quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Jardim Secreto



              Lembro-me do cheiro forte de eucalipto, limpando as minhas vias respiratórias e de milhares deles à minha volta. Árvores mais velhas, mais novas, outras brotando, pontiagudas, com aquele perfume cítrico maravilhoso. Bem no meio daquele paraíso, uma casa pequena, com o telhado coberto de madressilvas, me deixou encantada. Logo à frente, uma bomba d’água que mais parecia um enfeite em meio àquela moldura maravilhosa.
               Girei a cabeça e pude avistar a uns quinhentos metros, uma nascente, como se fosse uma fonte da juventude, (imaginada por tantos, inclusive por mim) então, corri em direção a ela e me deparei com algo ainda mais lindo (se é que isso é possível, depois de tudo o que descrevi), a água cristalina ia bailando por entre milhares de pedras e caia numa ladeira em forma de cachoeira, fazia-se tão linda, como uma grinalda imensa, embaixo daqueles trilhos verdes, envolvidos pelo perfume e os pássaros que ali habitavam. Tudo parecia compor uma espécie de poesia, um canto que nunca ouvi...
              Me emocionei, era bonito demais para eu ser merecedora de estar ali, tão sóbria de mim, tão feliz com o vislumbre da mágica descoberta.
              Os raios do sol penetravam as frestas das árvores, pareciam brocados bordados de pura energia e nascia de uma claridade pueril, encantadora. Emaranhadas nos eucaliptos, haviam espécies de orquídeas que eu jamais pensara contemplar e muitas delas, caindo em flores, as árvores pontiagudas pareciam quase chegar ao céu e as flores iam subindo, como num desenho em que o artista brinca com as formas e cores, traçando, com harmonia, o que está dentro de si. Para mim, aquele lugar, naquele momento, estava dentro de alguém, talvez até mesmo dentro de mim, mas eu não tinha tempo para reflexões, queria explorá-lo ao máximo e descobrir muito mais.
             Continuei caminhando, agora em direção da casa, parei e fiquei olhando, era simplesmente instigante, parecia convidar-me para dentro, pisando numa escada de três degraus, brancas de tão areadas, adentrei.
               No fogão a lenha, havia água esquentando e algumas panelas muito brilhantes (que mais pareciam espelhos), penduradas na parede que também estava muito limpa, aliás, tudo era muito limpo. A mesa grande, o único móvel da cozinha, depois do fogão, era muito interessante, tinha várias gavetas nas laterais e os pés trabalhados, como uma relíquia nunca vista pelos meus olhos, nem nas revistas mais suntuosas dessa categoria. As cadeiras, muito pesadas, também talhadas num fino trato, deixaram-me de queixo caído, em cima da mesa, um cesto com pães, coberto por um guardanapo de linho, bordado sutilmente, por linhas de várias cores num desenho primoroso de se ver, um trabalho que não sai da minha cabeça, enfeitiçou-me pela sua candura e beleza.
               A casa possuía apenas uma cozinha, um quarto de banho e um enorme quarto de dormir, com uma cama bem aconchegante, duas mesinhas de cabeceiras, um piano e sobre a banqueta do mesmo, várias partituras escritas a próprio punho, do outro lado, uma mesa com vários livros e um caderno de anotações, onde pude ler noções de fitoterapia, vários experimentos com plantas medicinais e numa folha à parte, um lindo poema, li várias vezes, mas não pude trazê-lo comigo, nem em lembranças, só sei que era belo e falava de um amor ausente e da dor da saudade.
Também não deixei de notar uma máquina de costura, com várias peças por fazer, todas dobradas em cima da cadeira usada para assentar-se à velha máquina. No quarto de banho, observei uma pilha de toalhas, todas brancas e bem passadas, um baú e uma prateleira com vários produtos de higiene. No confortável tacho de banho, perfume de rosas, de repente, senti algo estranho, me veio à mente, que eu talvez já estivera naquele lugar. Não, tive certeza disso, então, saí correndo, sentei-me sobre uma pedra, confusa, vi de longe uma moça, com trajes de homem e na medida em que se aproximava, com dois carneiros, um em cada braço, suas tranças caiam de baixo do chapéu e mostravam toda a sua feminilidade, também a acompanhavam dois cães enormes, um de cada lado e quando ela entrou com os carneirinhos, os cães de puseram em posição de guarda.  A escuridão tomou conta, só se via o lampião, que pelo visto, a acompanhava e logo, o silêncio total.

               Então, eu acordei intrigada com o sonho, passei o dia todo em silêncio e cheia de perguntas ocultas. A maravilha daquele lugar somada à paz que me abraçava, todas as vezes que a lembrança chegava, era algo que eu nunca havia sentido antes. Minha vontade era de dormir imediatamente e com todas as minhas forças, tentar voltar para aquele ditoso paraíso e eu, que sempre fui cética quanto a sonhos, passei a me interessar por eles de um modo que eu mesma nunca imaginara um dia.
               Por várias vezes, noites após noites, pedi e tentei, com todas as minhas forças, voltar para o mesmo sonho, ou, de alguma maneira, continuar a sonhá-lo, mesmo que de olhos abertos. Era como se eu, desesperadamente, tivesse que voltar para respirar aquele aroma e deleitar-me com a beleza daquele lugar que, nas minhas lembranças, não era apenas lindo, mas como já citei, era mágico...um verdadeiro paraíso.
               A lembrança dos objetos e do semblante daquela moça vestida de homem, em um tempo tão distante, me intrigava mais do que deveria e, nesse momento, estava eu sentada numa poltrona, perto de uma janela, quando começou a chover, então pensei que a chuva naquele lugar seria ainda mais linda e, de repente, comecei a caminhar por uma trilha, no meio daquelas árvores e o cheiro estava ali, junto com a beleza indescritível. Fui, então, arrebatada para perto daquele telhado coberto de madressilvas, os aromas se misturavam e eu, por alguns minutos, agradeci por estar naquele lugar novamente e pedi que não fosse curta a viagem dessa vez.
              Comecei a pisar nas folhas secas e gravetos, com todo cuidado, não queria fazer barulho e muito menos alterar aquele lindo cenário. De repente, fui pega de surpresa por um punhado de borboletas azuis e brancas, que voavam formando uma dança no ar e ali, no meio, fiquei enfeitiçada com tanta beleza, era tudo tão colorido, o verde tão verde, as flores tão perfumadas, tudo tinha vida especial, era como se tudo tivesse alma e o espírito falasse, ou, quem sabe, até se movesse. Foi então que ouvi uma música, vinha lá da casa, certamente daquele piano que vislumbrei no outro dia, a música era simplesmente surreal aos meus ouvidos e conhecimentos. Sentei-me no chão, como se tivesse sido hipnotizada, a música acabara e novamente recomeçara. Eu, embevecida com tamanha beleza, não conseguia levantar-me, foi quando percebi a chuvinha fina caindo sobre o telhado e os pássaros, de todos os tipos e cores, bailando, a procura de abrigo.
               O meu desejo se realizara e agora eu presenciava a chuva a cair naquele lugar, que, a cada minuto, parecia mais meu e tomava formas diversas, cada vez mais encantadoras. Eu olhava de um lado pro outro, as flores molhadas pareciam acetinadas, assim como as gramas e folhas que estavam por toda a parte. O sol miúdo baixava e o contraste com a chuva, trazia um maravilhoso espetáculo abaixo da casa, um enorme arco-íris surgiu, levantei-me e caminhei até ele e, como num conto de fadas, eu pude tocá-lo. Sim, eu o toquei! Toquei o arco-íris e minha minhas mãos ficaram banhadas de uma luz colorida, uma experiência indescritível, perplexa com tudo, virei-me devagar, como se pisasse em nuvens, meus pés pareciam nem tocar o chão, sensações de um frio no estômago e as pernas bambas, trouxeram-me para a realidade da grande emoção que eu estava sentindo.

               Sentei-me perto da bomba d’água e, nesse momento, percebi que a chuvinha já se fora, dando lugar a um frio intenso e, então, pude ver a moça saindo às pressas, procurando alguma coisa. Eram dois bebês ovelhas, que ela agora trazia em seus braços, com um sorriso de alívio. Depois de guardá-los em um abrigo seguro, entrou na casa e a música novamente começou.
Ah! Eu precisava chegar perto e descobrir algo mais, o porquê de vivenciar tanta beleza, tanta paz. Resolvi entrar na casa e, bem de mansinho, o fiz, a porta estava aberta e os cães nem notaram a minha presença, para eles parecia familiar e não demonstraram qualquer inquietação. O cheiro daquela casa era de aconchego, eu podia até sentir o gosto do bolo que estava sobre a mesa, o fogão a lenha estava aceso, esquentando água e cozinhando uma sopa, o cheiro também já me fora apresentado. Caminhei e lá estava a moça, sentada ao piano, vestia calças, casacos e botas, o frio havia aumentado. Seus cabelos trançados caiam nas costas e a música continuava, pude então perceber toda a agilidade dos dedos que, delicadamente, tocavam nas teclas com afinco e destreza. A cabeça balançava, como se relembrasse algo e os pés batiam no chão como se contasse as notas. Ela amava o que estava fazendo e aquela música, provavelmente, fazia parte dela. Eu apenas ouvia, meio que estagnada, deixando entrar nos meus ouvidos e graças à minha alma, que, nesse momento, tremia, comecei a chorar, sentindo uma espécie de saudade, querendo, naquele momento, um aconchego, uma única palavra de amor.
               Quando ela se levantou do piano, eu vi seu rosto banhado em lágrimas, percebi que ela sentia o mesmo e que sua dor e solidão eram imensas. Sentou-se então na mesa de canto e começou a escrever, eu não precisava ler uma só letra para saber o que ela escrevia, a dor daquele momento, o vazio. Aproximei-me, ouvi soluços e em meio a sussurros, uma frase dita em voz contida: -Onde estarás tu, oh, meu amor?
Senti tanto, naquele momento, que resolvi sair, caminhando em direção à porta e não pude deixar de perceber na parede, dois quadros pintados a óleo, um homem e uma mulher, figuras que não me eram estranhas e então, fiquei confusa e fui saindo dali,encolhida, como se algo doesse profundamente. E doía mesmo! Acordei com meu pescoço travado, eu havia ficado por muito tempo de mau jeito, mas não era só isso, eu estava triste e ao olhar-me no espelho, vi a minha face e os meus olhos vermelhos, evidenciando que eu havia chorado. Minha cabeça estava zonza, deitei-me na cama e fiquei ali, de olhos estalados por um bom tempo. Eu queria entender o que estava acontecendo e, ao mesmo tempo, era como se eu soubesse, uma sensação estranha e extraordinária tomava conta de mim.

               Durante todos os dias, os afazeres me distraíam das lembranças daqueles sonhos tão intrigantes, mas nas noites, era impossível não recordá-los, até dormir e ter sonhos vazios. Sim, depois daqueles sonhos mágicos, os outros não faziam sentido... . A minha essência estava à flor da pele e, dentro de mim, muitas perguntas sem respostas, foi quando me lembrei de algo e sai correndo, para verificar se era verdade, buscando em umas coisas velhas de minha avó, tentando encontrar, enfim, o que tanto me intrigava e, finalmente, encontrei! Um caderno, com várias partituras, feitas em próprio punho e que, provavelmente, fora de uma bisavó ou tataravó e emocionei-me, as notas desenhadas lindamente, eram iguais àquelas que vi na mesa de canto, junto ao vidro de tinta mal tampado e uns pincéis, na casa do meu sonho tão real. Minha avó, segundo minha mãe, guardara aquela relíquia, não pelas partituras, mas sim, por uma oração que continha no verso de uma delas.

               Eu fiquei ali, com aqueles papéis amarelos nas mãos por algum tempo e depois os coloquei sob um vidro pesado, a fim de ajustá-los melhor e tentei copiar, pelo menos uma partitura, mas minhas mãos tremiam, corri então para minha mãe e fiquei a fazer-lhe perguntas, ela pediu-me uma das partituras para tocar no órgão (instrumento esse que ela domina), fui buscar apressada e só então percebi, bem no cantinho, uma assinatura quase ilegível, mas deu para ler: Carolina.
               Perguntei, desesperada, quem fora Carolina e minha mãe contou-me que era a sua tataravó, ela teve um único filho e o pai o arrancou de seus braços, mandando para uma tia de bem longe, para que o criasse. Segundo a história verdadeira, Carolina ficara grávida, solteira e seu amor morrera antes deles concluírem seu plano de fuga...teria que ser assim, pois o pai dela nunca permitiria que se casasse com alguém analfabeto e pobre, como era o caso do tal moço. Então, Carolina, desesperada de dor, fugiu de casa e recebeu abrigo de uma prima, que também havia sofrido desse mal. Segundo consta, ela fora morar pelos lados do Rio Grande do Sul, nas terras dessa prima, mais precisamente, em uma fazenda que tinha uma imensa plantação de eucaliptos.

               Depois do relato de minha mãe, que não sabia uma única palavra sobre meus sonhos, fiquei atônita, confusa e atordoada ao mesmo tempo, chorei ao ouvir aquela canção tocada pela minha mãe, por sinal, a mesma que ouvi naquele piano, tocada por aquelas mãos ágeis, que me pareciam cheias de dor e então, chorei. Minha mãe também se emocionou enquanto tocava, vi seus braços arrepiados e lágrimas descendo por sua face, eu não disse uma só palavra a ela, mas senti que precisava urgentemente contar-lhe sobre o sonho, mas isso em um outro momento.
               Fui para minha casa tentar descansar um pouco, a noite já caíra e depois de tantos pensamentos e descobertas, eu estava pavorosa, cansada e dependente de um bom sono. Tomei meu banho e me deitei...
               Ah! Estou novamente caminhando numa estrada cercada de eucaliptos, eu que pensei que tudo havia terminado...é o meu jardim secreto, não consigo imaginar outra  coisa, nem dar outro nome, Jardim Secreto, onde a graça e a beleza das orquídeas me saúdam, como se eu fosse uma visita esperada (é relevante dizer que sempre tive uma afinidade com as flores, em especial com as orquídeas. Fiquei doente durante algum tempo e quando me curei, elas se abriram todas, mesmo que fora de época, como se me felicitassem pela minha cura. Sempre tive vários vasos em minha casa e também sempre foi o meu presente e mimo favorito, pois elas, as orquídeas, me transportavam para um mundo paralelo, de muita paz e beleza, isso sem contar o amor e a harmonia que elas me transmitem).
               Continuei, andei uns quinhentos metros e avistei o maravilhoso telhado, coberto de madressilvas e a chaminé soltando aqueles rastros de fumaça, evidenciando a  beleza que me saltava aos olhos. Pássaros vieram encontrar-me, voavam lindamente à minha volta e, próximo da casa, sentada numa pedra, estava a moça penteando os cabelos, cantarolando uma canção triste, de um lá lá lá sem fim e, ao seu lado, dois cães que pareciam guardiões (isso já foi citado, mas é tão impressionante que aqui estou eu descrevendo novamente).
               Eu tinha vontade de tecer várias perguntas e ouvir todas as respostas, mas era impossível, parecia  ter um escudo entre nós, eu me sentia em outra dimensão, podia vê-la, ouvi-la, sentir o seu perfume cítrico, mas ela olhava para o nada, uma nau de total solidão. Sentei-me à sua frente e pude observar os traços do seu rosto, a cor dos seus olhos, o contorno da sua rosada boca, as mãos com dedos longos e neles, dois anéis, sendo um, uma linda aliança. No pescoço, um cordão pesado segurava um pingente que trazia um nome, a principio tentei ler a todo custo, mas não conseguia, de repente, a luz do sol mirou a chapa de ouro e ficou evidente o que havia escrito nela e eu li pausadamente: Carolina...é...Ca – ro – li - na!Acordei ofegante, agora eu havia entendido tudo...
 ValquiriaCordeiro


(Todos os relatos desse texto são ficção)





*Texto revisado pela escritora e poetisa Marcia Mattoso.